Quando O Homem Nu, de Fernando Sabino, é descoberto preso do lado de fora de seu apartamento, vestido apenas com um embrulho de pão, além de chamar a rádio patrulha, os vizinhos se desataram em gritaria e reclamações. Entre um “— Olha, que horror!” e um “Já pra dentro, minha filha!” o que se viu foi uma engraçada exposição, não do corpo do homem simplesmente, mas do pudor ao corpo do homem. Esse corpo que todos nós conhecemos.
Lembrei disso há uns dias, quando Xico Sá me disse (via seu blog de crônicas ao qual mantenho fidelidade certa) de uma pesquisa na Inglaterra que concluiu que homens passam em média 43 minutos do seu dia observando as mulheres. Aqui no Brasil, o próprio Xico defende que o tempo de observação não é menor que 3 ou 4 horas – 4 horas bem-vividas, protesta o cearense mais pernambucano de que já ouvi falar.
Na mesma pesquisa, no entanto, o tempo médio gasto por mulheres na observação dos rapazes não passaria de 20 minutos. Diários. “Econômicas”, analisa. Econômicas decerto, porque é realmente uma economia de vista que a diferença seja tanta a ponto de ser dobrada. E nisso, pelo que entendi, não se inclui o tempo que cada grupo passa a observar imagens do grupo oposto. Só o corpo a corpo é que conta na pesquisa lá na terra da rainha. Imagina se contasse a observação via fotografia, vídeo, programa de humor na tevê?!
É uma economia que, de certeza, não é espanto pra ninguém, tendo em vista a educação social e sexual que recebemos, homens e mulheres, de formas tão diferentes e até opostas. Miguel Rios, pelas tantas do Dia Internacional da Mulher, fez um texto que falava bem melhor sobre essas diferenças e oposições tão superficiais. Vale ler!
O contraste faz-se presente na forma de se vestir, nos objetos de consumo, nos comportamentos perpetrados. E acho que no caso da pesquisa britânica, o tempo de observação desses corpos demonstra mais do que interesse: liberdade.
Aos homens, a liberdade de observar os corpos femininos, de admirá-los, possui-los, nem que seja pela fotografia – ou até pelo elogio inadvertido no meio da rua. Às mulheres, a liberdade de serem indiferentes aos corpos dos homens – porque vale lembrar também que ser indiferente é uma liberdade que os homens, pelo senso comum, não têm.
Escrevi aqui no blog, há quase exatamente um ano, sobre o status da nudez feminina e sua (auto)representação imagética, a afirmação de poder através da identidade pelo próprio corpo. E essa reflexão não nasceu de um contexto isolado, mas dialoga com um interesse pessoal pela representação dos corpos humanos, masculinos e femininos, os papeis que desempenham como corpos nus, construtores e reforçadores de discursos de identidade bastante específicos e muitas vezes tão batidos.
É interessante observar isso na história da fotografia, a que está escrita e a que escrevemos diariamente. As primeiras aparições do corpo masculino, nu ou pouco vestido, vieram desde o daguerreótipo. Essas imagens estavam comumente associadas à produção de modelos para pintores e escultores. O objetivo era baratear o acesso aos modelos vivos, tão caros na época, e o resultado estava quase sempre relacionado à aura da obra de arte.
O acesso ao corpo masculino ocorria apenas em lugares pré-autorizados e esteve muito conectado com o estudo da anatomia do corpo, existindo poucos espaços de transgressão dessa expectativa. As temáticas seguiam pela cultura grega, produzindo uma retratação mais clássica do corpo dos homens.
Somente na década de 1930 é que o corpo masculino ganhou as páginas das revistas especializadas, geralmente relacionadas ao culto à saúde, à força e aos músculos – os avós da Men’s Health. E foi a praia o principal lugar de transformação dessa cultura do corpo, tanto do culto ao corpo feminino (vide Leila Diniz grávida de biquine em foto de Joel Maia) como ao corpo masculino.
Mas ainda repercutiu durante bastante tempo uma prática fotográfica que retratasse o homem distanciado da eroticidade, como se o que era erótico não pudesse macular o corpo masculino, símbolo de virilidade, ao mesmo tempo que de estabilidade e moralidade. Esses modos de retratar o homem demarcavam uma perspectiva de abordagem diferenciada entre o corpo do homem (burguês e detentor do poder político, econômico e social) e os outros corpos, “dominados” por essa ideologia “dominante”.
Foram os movimentos da contracultura, nos anos 1960, que começaram a discutir a liberação sexual e questionar o conceito de corpo que esse modelo já tradicional disseminava. Os estudos de gênero ganharam força e começaram a repensar a imagem do corpo feminino nesse contexto.
Muitos papeis têm sido reposicionados desde então, mas a mudança de uma prática social não se faz da noite para o dia – por mais curto que a Internet tenha deixado esse dia. No texto do ano passado, eu já falei sobre a dificuldade de descolamento do corpo nu feminino da linguagem do erotismo e do desejo masculino. Cabe aqui fazer também, em complemento, uma análise do contexto que traz uma espécie de contrapartida dessa abordagem: do corpo masculino nu, pouco erotizado, diante do olhar da mulher. Digo pouco erotizado porque é importante entender que já existem espaços de erotização desse corpo – afinal, já estamos a dois séculos desde que as mulheres passaram a ser fotografadas como símbolo erótico. Mas vale entender as diferenças entre essas expectativas e esses espaços de desejo.
Vânia Toledo, fotógrafa brasileira autora do livro Homens comentou, em entrevista à revista Trip (n.º214) que “a nudez masculina só aflorou com a cultura gay”. É dela uma das primeiras fotografias a me fazer questionar a relação do olhar feminino com o corpo dos homens: um retrato de Caetano, nu, encostado à porta de sua casa, em 1979. A foto, vista por mim há uns anos, me chamou a atenção, na época, pelo simples fato de retratar com tanta naturalidade e beleza um homem pelado. Um tipo de abordagem que não me parecia comum.
Porque é importante perceber com calma o que o comentário de Vânia sobre a nudez masculina ser liberada com a cultura gay tem de tão relevante. É que o culto ao corpo do homem só começou a ser permitido e praticado quando direcionado a outros homens – por mais homofóbica que nossa sociedade possa ser.
Esse histórico tem repercussão bastante forte na forma de uma mulher enxergar o corpo masculino. Jacques Aumont falou de uma “assimetria entre personagens masculinos dotados do poder de olhar e personagens femininas feitas para serem olhadas; ou (…) entre a mulher como imagem e o homem como portador do olhar do espectador”.
Não é à toa que duas das poucas publicações comerciais consideradas referências no tratamento da fotografia de nu, seja masculino ou feminino, como a Trip e a Tpm, reflitam esses dois relacionamentos dos olhares com os corpos. Na Trip, é comum ver o corpo feminino inteiramente revelado; na Tpm, por sua vez, o corpo masculino, na grande maioria das edições, está resguardado por um ângulo, um corte, uma roupa específica.
Alguns fotógrafos na história da arte já tentaram transgredir esses códigos. Mappletorpe nos anos 1970 e 1980 construiu boa parte de sua poética visual baseada no retrato de corpos de homens, inclusive do seu próprio corpo, e destacou-se pelos retratos dos corpos negros. Nan Goldin fotografou, nos anos 1970 e 1980, espaços de contracultura e retratou homens e mulheres nus de forma a reescrever a noção de eroticidade masculina e feminina e causar polêmica até nos dias de hoje.
Mas a arte é realmente um espaço de transgressão do que é normativo. Vale debater aqui não exatamente os momentos de transgressão dessa ordem, mas essa normatividade que afasta o olhar feminino do corpo masculino, que redireciona pouco ou pobremente o olhar da mulher em direção ao homem e os resultados que essa cultura produz na forma de a mulher lidar com esse corpo, que não é seu, nem semelhante, que não é melhor, nem pior, que não é puro, nem impuro. Mas que pode ser bonito e admirado.
Há quem argumente que as publicações refletem as demandas do público. Particularmente, acredito que as demandas do público são, em muito, motivadas por nossas formatações culturais. Não é à toa que, no mesmo texto da Trip, Roberto de Carvalho tenha negado estar nu na foto em que posa com os dois filhos pequenos para o livro de Vânia. “Estou de sunga”, o que Vânia contesta: “O que está acontecendo? As pessoas encaretaram! Todo mundo ficou nu durante as fotos. Até porque o livro era sobre homens de pensamento libertário, não sobre homens que precisassem fingir que pensavam assim”.
Não sei se as pessoas encaretaram, ou se esse momento de libertação que Vânia define como sendo o ponto de partida do seu livro – o retrato de homens libertários – era, na verdade, um momento de algumas irresponsabilidades. Mas o que, muitas vezes, se apresenta continua sendo uma dificuldade de aceitação dessas fotografias de homens quase que naturalmente nus.
“Não fiz o livro para escandalizar, ainda que as pessoas se choquem com ele até hoje. O que eu queria era encontrar uma beleza no corpo masculino que não dependesse do apelo erótico. Era como fotografar um filho”, disse Vânia na entrevista da Trip. Acho que essa afirmação reflete um pouco o dilema diário do confrontamento com a imagem do corpo masculino.
Somos educadas a, como mulheres, enxergar os homens desprovidos de sua eroticidade, da beleza de corpos que merecem ser admirados. Era como fotografar um filho, diz ela, descolando as fotos produzidas da beleza também erótica que elas têm. E me sinto como no conto das roupas novas do rei, em que todos comentam as magníficas vestes invisíveis produzidas pelo alfaiate. Diante do “é como fotografar um filho” de Vânia só me vejo pensando apenas: “é como fotografar um homem”.
Ou “o rei está nu”.
Republicou isso em Meus Sonhos Teus Desejos.